sexta-feira, março 10, 2006

Formalidades...



Deixa-me ser teu amante... pedia o pretendente.

A mulher hesitava ... mas não dizia que não. Os cumprimentos eram dados no canto da boca, existiam como ser que vivia dos olhares dos dois, nos silêncios espessos que se construíam ano após ano, numa intensidade imensa.

O chá era o convite dos dois... vamos tomar o nosso chá? era o pretexto de sempre, os olhares testando os limites comunicativos do corpo, como se este fosse feito para estar calado perante o belo ou o prazer.

Deixa-me ser o teu amante... repetia o pretendente.

A mulher hesitava... mas não dizia que não. Os outros dias eram vividos com outras mulheres, os espaços eram sempre plenos de pequenas esperanças, várias possibilidades, mas recorrentemente as vãs tranças que acompanham o defenestrar daquele olhar feminino fugidio para um vazio, no enfiamento de um rumo sem meta prevista, traçavam esses mesmos espaços... Ele esperava uma nova cumplicidade e nada ardia nesse sentido... Chá? sim, pois claro... um dia feliz.

Deixa-me ser o teu amante... sussurrava o pretendente.

A mulher sorria... mas não dizia que não. Os silêncios espessos apareciam logo ali, no fim dos sorrisos... os olhares penetravam-se fundos, os corpos de ambos falavam-se, por entre a neblina do chá, pelas mãos dadas, pelo beijo não dado... “a liberdade é uma maluca que sabe quanto vale um beijo” ... ambos sabiam que se iriam defenestrar nesse momento de dádiva. Seria o medo do principio do fim da cumplicidade?

Deixa-me ser o teu amante... ela não dizia não. Apenas deixava-se estar junto da mão que cúmplice ajudava a atravessar dias felizes, momentos fugazes de tudo que todos carregam nos olhares perdidos juntos ao vidro dos autocarros, embalados no movimento de reluzes... olhares fugidios que assaltam as ruas quase desertas, cheias de corpos para usar. Solidão ambos sentiam, como o gato que regressa depois de uma noite sem caça... e assim foi a primeira vez que os seus corpos falaram mais alto, num ir mudo os ventres foram, tocando-se. Era a verdade, depois da evidência, que viam agora? Silêncio espesso, escorregava no lugar das lágrimas secas, soldadas com sal. Tanto tempo e tudo no mesmo passo?

H - Deixa-me ser teu amante... hoje.

M - Irmos para a cama hoje, não passa de uma mera formalidade.

excerto do diário íntimo de um fauno desconhecido

4 Comments:

At 6:10 da tarde, Anonymous Anónimo said...

As pedras dessa calçada estão fortemente excitadas. A chuva caía, o dia nasceu inesperadamente desesperado e os passos que as calcaram eram de alcool... eram de alcool

 
At 4:15 da manhã, Blogger J. Vilas Maia said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

 
At 4:44 da manhã, Blogger J. Vilas Maia said...

mas permanecem paixões por se evaporar.
Tal como os paços emocionais se foram defenestrando ao ritmo da valsa lenta, também há passos de sangue, que não assumem o cobreado do sol, sendo azul... ainda azul

 
At 12:14 da tarde, Blogger I said...

Onde é que eu já vivi esta história?

 

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